sexta-feira, 8 de abril de 2011

Recontando Cinderela

Por onde começar? Bem, talvez seja melhor começar pelo nome. Meu nome é Cassady Buckley, popularmente conhecida como Cinderela. Surpreso? Não? Óbvio, é claro que você me conhece. Os fatos que vou lhe contar já foram recontados por inúmeras pessoas, mas, acredite, essa é a história verdadeira.

Tínhamos dinheiro, muito dinheiro. Meu pai era um dos maiores mercadores de Reino Distante. Cresci rodeada de luxos e mimos como uma legítima princesa. Só me faltava o título e, quando me dei conta disso, passei a traçar meus objetivos para alcançar tal feito.

Tracei friamente meu plano, tendo em mente cada detalhe, cada objetivo. A primeira coisa a ser feita era dominar as artes arcanas. Nesse ponto, a Madrasta Má de Branca de Neve serviu-me como uma excelente professora. Precisei envenená-la ao fim de tudo, é claro, e é apenas por isso que ela deixou a pobre Branca em paz no fim das contas.

Por que aprender magia? Ora, uma mulher necessita dominar o seu meio e eu o queria fazer de forma completa. Meu segundo passo foi assassinar minha mãe. Uma moça bem criada, com uma família perfeita, jamais se dá bem nos contos de fada, você sabe.

Sufocá-la durante o sono não foi uma atitude difícil; fui criada por uma ama-de-leite e o único sentimento que tinha por minha mãe era a inveja de seus cabelos. A maldita tinha madeixas incrivelmente longas e perfeitas. Ainda guardo a peruca que fiz com seus cabelos.

Sempre tive uma queda para a dramaturgia, de modo que fingir-me de “pobre mocinha sem mãe” foi simples. Meu pai, um cafajeste de primeira, não esperou nem mesmo uma semana para trazer para dentro de nossa casa sua antiga amante, com a qual já havia feito duas irmãs bastardas. Era excelente: a pobre mocinha sem mãe agora possuía uma madrasta e duas irmãs, que eu daria um jeito em transformar em duas megeras rapidamente.

Abandonei os trajes elegantes e passei a vestir-me com os trapos da criadagem. Senti nojo a princípio, o cheiro da gentalha impregnado nas roupas me causava asco, mas o objetivo maior deu-me forças. Ser princesa, ter um príncipe em quem mandar e todos os homens do reino a me desejar, ter centenas de criados, vestidos e sapatos, sapatos às pencas! Sou fanática por eles, tenho de todos os modelos, de todos os contos da Fantasia.

Utilizando alguns rituais de controle mental, consegui fazer com que minha madrasta demitisse toda a criadagem e me impusesse aos trabalhos domésticos. Não pense com sua cabeça oca de leitor de contos de fada que sujei minhas lindas unhas ou maculei minha tez macia na imundície da faxina. Meu controle sobre as forças da natureza já estava bem desenvolvido, principalmente com os animais, de modo que possuía um exército silvestre a meu favor.

Agora, falemos de minhas duas irmãs bastardas. Eram lindas e gentis, mas consegui manipular a opinião pública, transformando-as em duas invejosas de primeira linha. Ambas puxaram os olhos de meu pai, belíssimos olhos verdes, um verde profundo e lindo. Hoje, através de magia, possuo os mesmos olhos. Assim que chegaram a minha casa, comecei a colocá-las uma contra a outra, fazendo com que ambas acabassem por me fazer mal sem perceber, acreditando estar atacando a outra.

Finalmente, ouvi falar de um baile em que o príncipe escolheria sua noiva. Era meu momento de glória. Contei o fato as minhas irmãs, incentivando-as a ir, afinal, eu, uma pobre moça sem mãe, “feia” e maltratada pelos serviços domésticos jamais teria chance. Falei também com minha madrasta, falando da grande oportunidade de ter uma de suas filhas dentro da corte, ainda mais como princesa.

Veja que não foi difícil incutir a ambição desmedida nesses fracos corações humanos. As duas bastardas agora se odiavam mais do que nunca; já não eram irmãs, eram rivais. A mãe passou a tratar-me de modo realmente rude, tão preocupada estava com suas filhas candidatas. Precisei conter-me para não cometer uma loucura, submetendo-me ao capricho das três. Lembre, o objetivo final era maior e valia qualquer sacrifício.

O baile não durou três noites, como conta a história. Fui um banquete chinfrim que começou ao entardecer e foi até a meia-noite, ou um pouco mais. Assim que minha madrasta e suas duas adoráveis filhas saíram para o baile, tratei de vestir-me com o suntuoso vestido que havia mandado fazer com o Alfaiate Valente. Era um grande trovador, mas mestre nas agulhas como nenhum outro.

Para os pés, encomendei com os anões da Branca um sapato de cristal. Os imbecis possuíam a delicadeza de um elefante e não conseguiram terminar o projeto. Contentei-me com um sapato feito de ouro. Era muito pesado, mas combinava divinamente com os demais acessórios.

Ao chegar ao baile, causei furor. Ninguém mais lembrava minha figura sem relacionar-me com os trapos que vestia. Passei desconhecida por todos. Quando consegui trocar o primeiro olhar com o príncipe, enfeiticei-o. Estava dominado, não era mais do que um cãozinho dócil, louco para lamber meus pés.

Enquanto dançávamos, alguém me cutucou, apontando para um canto do salão. Quando terminamos a dança, dirigi-me até lá. Era um desconhecido, vestindo capa e botas. Sussurrou-me aos ouvidos:
- Sei quem és e o que fizeste.
Fui tomada por um terrível pânico. Uma testemunha de meus crimes poria tudo a perder. Decidi rapidamente acabar com ela, mas não o poderia fazer ali, na frente de todos. Convidei-o para negociar um suborno, precisávamos acertar o preço nos jardins do castelo. Ele seguiu-me. Assim que nos afastamos, esganei-o contra uma árvore. Para meu desespero, o idiota do príncipe resolveu seguir-me, ouvi sua voz chamando-me. Fugi, precisava ter calma para retomar meus planos. Na fuga, retirei os pesados sapatos de ouro e atirei-os em um pé de azeviche. As histórias posteriores confundiram essa palavra com “piche”, daí você depreende a suposta armadilha do príncipe.

No dia seguinte, acordei com batidas em minha porta. Era meu pai, dizendo que havia um homem que queria ver-me. Assustada, pensei ter sido descoberta. Vesti-me com os trapos e desci as escadas. Apesar de tudo, estava confiante de minha sorte.

Encontrei minhas duas irmãs bastardas sentadas a um canto, chorando, os pés cheios de sangue. Tal era o estado de insanidade das duas que, ao ouvir que o príncipe procurava a portadora dos tais sapatos, fizeram de tudo para calçá-los. Você lembre, eram de ouro, nada maleáveis. As doidas cortaram dedos e até mesmo o calcanhar para o sapato entrar em seus pés.

Sentei-me, certa de que não havia mais alternativa. O príncipe descobriria meu crime e eu seria condenada à forca. Mas o tolo olhou em meus olhos e, novamente fazendo uso de meus poderes, dominei-o. Manipulei sua mente e o fiz acreditar naquilo que você leu nas outras versões de minha história: não havia assassinato, ele procurava a dona dos sapatos para ser sua noiva.

A seguir a história geralmente é contada de modo correto, a não ser pelo fato de que os pássaros que arrancaram os olhos das bastardas terem sido controlados por mim. Não conseguiria viver feliz tendo aquelas quatro esmeraldas verdes invejando minha posição.

Hoje, estou velha, o príncipe é um velho babão que sequer sabe quem realmente sou. Para ele, continuo a mesma princesinha simples com quem ele casou. Estou cansada dele. Acho que está na hora de pô-lo para descansar. O cargo de rainha me seria perfeito!


Alessandro Jean Loro e Bruna Cristina Lampert

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